O Iceberg
Eae pessoal, aqui quem fala é a Thavilla, mas vocês devem me conhecer como Cris. Sou estudante do sétimo semestre do curso de filosofia e bolsista do projeto Filo Sofia: Construção de Saberes Filosóficos. Vim aqui contar pra vocês (como cria de escola pública) uma pequena e importante experiência em sala de aula que ajudou a preparar meu caminho e que me trouxe até onde estou hoje. Para todes es educadores, e estudantes que lutam pela educação, FORÇA!
O Iceberg.
´´Quando tinha meus onze ou doze anos, me deparei com uma questão absurdamente grande, maior do que era aceitável para que eu desse de conta. Eu tinha onze ou doze anos e essa professora de português ( que era bem simpática) veio com um papo meio estranho de enxergar o iceberg todo.
Eu confesso que no dia em questão estava viajando na aula, pensando em muitas coisas, observando as letras no quadro e vendo todas as palavras misturadas, e a professora vem e me solta um ´´Sempre vejam o iceberg todo, o Titanic afundou por ver só a ponta do iceberg``.
Bom, eu não estava muito atenta, e não sabia o que era um iceberg, e também nunca tinha assistido Titanic, então meus amigos zoaram e eu tentei entender, disseram que a professora estava viajando, pela minha confusão a viagem dele deve ter sido bem longe da minha, e eu fiquei ali, questionando aquele iceberg, pesquisei e descobri o que era, um negócio de gelo. Assisti o filme e entendi que aquela galera toda que estava no navio achava que a paradinha de gelo era pequena e que não tinha problema de bater no casco do navio, mas a paradinha era tão grande que transformou o navio que ´´nem Deus afunda em lascas``. Eu não conseguia entender porque ela tinha falado pra ver o iceberg todo.
Estávamos andando em direção a essas massas de gelo flutuando no oceano que é nossa vida? Precisávamos desviar dela?
O tempo foi passando e todas as vezes que a professora entrava na sala minhas amigas riam e cochichavam sobre o tal do iceberg e tudo o que eu queria era entender o que diabos era esse iceberg e porque eu deveria enxergá-lo...foi um drama.
Um dia então, cheguei na tal professora, perguntei o que ela queria dizer naquele dia e ela não teve nenhum problema em explicar com poucas palavras que ´´tudo é mais do que a gente consegue vê, e as vezes o que está escondido sob as águas é ainda maior do que temos conhecimento.``
Parecia no mínimo absurdo que as coisas fossem mais do que eu peço ver, eu olhava uma árvore e via uma árvore, eu olhava um carro e via um carro. Minha mãe costumava dizer que eu tinha pouca imaginação, e tudo que eu imaginava era levando em consideração só o que eu sabia e o que eu via, e ela estava certa... mas não queria que estivesse.
Eu lembro muito bem de sentar de braços cruzados de frente ao meu cachorro, ( Descanse em paz, Lobão) e tentar enxergar o que mais ele tinha a me oferecer. Eu via um cachorro, que conheci quando filhote, e que era gigante, observei ele correndo atrás do próprio rabo, e correndo pelo quintal. O máximo que eu conseguia ver além do que estava vendo era; preciso ensinar uns truques pra ele. Dentro de casa a cozinha ainda era a cozinha e não tinha como ser nada além disso. Armário, mesa, pia... o armário vem da madeira, a madeira vem da floresta... precisamos de árvores, porque animais precisam dela e do oxigênio que sai dela...disso eu sabia, quanto mais armários menos árvores... mas e se quando a pessoa que fez o armário corta a árvore pra produzir o móvel ela plantar uma nova árvores? Será que ela planta? Será que quem corta a madeira é quem faz o armário? Parecia bobagem, meu pai montava peças em uma fábrica, peças que montavam máquinas de costura, mas ele não montava a máquina de costura, nem produzia o plástico, e minha mãe dava aulas mas ela não fazia o conteúdo, então era bem provável que a pessoa que fez o armário e a pessoa que cortou a árvore fossem pessoas diferentes...e se quem cortou a árvore e quem fez o armário são pessoas diferentes, quem planta a árvore também é uma pessoa diferente?
De uma hora para outra tudo mudou, eu queria saber como a água encanada chegava a minha casa, e como a água era tratada depois de passar pelos esgotos, e se as pessoas que recolhem o lixo costumavam dizer ´´hey, esse lixo é meu`` depois de recolher o lixo da própria casa, me questionei se eu era uma assassina de árvores por gostar muito de livros, porque afinal de contas, os livros eram feitos de papeis e os papeis vem da árvore, e como a moça fala na tv com a certeza de quem tem muitas pessoas assistindo, e como as pessoas da tv ganham salário se a maioria das pessoas que eu conhecia não tinham tv por assinatura? Onde os políticos passam os três anos entre uma eleição e outra? Porque algumas pessoas tem casa e outras não e as pessoas dizem que todos tem direito a moradia? Porque eu tinha pai e mãe e alguns dos meus amigos não?
Eu não conseguia mais ver o que estava sobre a água, como se tivesse pulado do titanic e estivesse mergulhada na água fria, com um snorkel de respirador... sempre vendo o iceberg todo, ou pelo menos o que eu estava a vista na imensidão oceânica das dúvidas.
Bem...acho que daí em diante tudo mudou, não me lembro das dúvidas insistentes antes da história do iceberg. Minha mãe sempre me descreveu como uma pessoa teimosa e que nunca aceita um ´´porque sim`` como resposta, eu era uma substância inflamável, e aquela professora acendeu a famosa chama da curiosidade em mim.
Nunca esqueci aquela professora, aquele foi um dos afetos mais marcantes da minha passagem pelo ensino fundamental, o iceberg me deixou alerta para o mundo, me fez a curiosa garota que começou a sonhar com o mundo de descobertas e dúvidas da filosofia, manteve em mim o olhar brilhante, manteve ativa a natureza filosófica de criança que existia em mim.
O tempo vai passando e tudo o que eu queria era ser a professora de português de alguém, falando sobre icebergs, parece até um ato heroico, e é! Queria abraçar a professora de português e agradecer, ela e seu iceberg me fizeram sonhar em ser uma professora, educadora, uma filósofa, me fizeram sempre sentir fome por esse mundo e sempre tentar ver através da água escura, cada vez mais fundo...``
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