As letras não gostam de mim.
Diário de Estudante de Filosofia: ´´As letras não gostam de mim``
Quando era criança, lembro que era comum pra mim
sentir que a escola não gostava de mim, ou até mesmo as letras, o que era
absurdo porque eu adorava a escola e adorava ler e escrever, inventava
constantemente razões para escrever, escrevia anotações sobre meu dia nas
últimas páginas do caderno, escrevia e apagava coisas aleatórias nas folhas do
meio do caderno, fazia redações sobre tudo que me interessava, escrevia os
nomes das minhas músicas favoritas e listas de coisas que eu queria fazer, mas
as letras não gostavam de mim, e a escola também não.
Lembro que a primeira vez que pensei isso, foi quando
percebi que não importa o que eu fizesse, algarismos romanos eram códigos que
não entravam na minha cabeça, toda semana, ou a cada duas semanas adicionávamos
mais dez algarismos romanos nas nossas atividades, cada um tinha duas ou três
letras, e nenhuma delas entrava na minha cabeça. O máximo que eu consegui
aprender foi até o ´´XXVIII`` e eu não passava daí. Como em casa eu gostava de
fazer as atividades da escola sozinha, eu comecei a alterar as questões
enviadas pela professora. Na sala de aula eu copiava no caderno; ´´Escreva do 1
ao 30`` em algarismos romanos. `` ao chegar em casa eu alterava a questão para
´´Escreva do 1 ao 20`` em algarismos romanos. `` Era um plano de gênia! SQN!
Depois de um mês fazendo a troca das questões, a
professora percebeu e chamou minha mãe na escola, parecia muito óbvio que eu
fosse ser pega um dia, e que as pessoas iam descobrir, mas eu simplesmente não queria
que as pessoas soubessem que eu não conseguia aprender. O desejo de estar no mesmo ´´nível`` ou ritmo que meus
colegas de classe, era maior que o meu desejo de aprender, eu não queria
aprender, queria estar com os demais. Eu senti que não conseguiria e se me empenhasse
em tentar eu ficaria para trás de qualquer forma. Foi ali que pensei que as
letras não gostavam de mim, porque naquela conversa com minha mãe, além de
relatar as minhas dificuldades com o tema específico de algarismos romanos, minha
professora fez questão de dizer que eu trocava várias letras; ´´ Ela troca o ´´p``
pelo ´´b``, o ´´v`` pelo ´´f``, ela troca tudo.``
Eu sabia que isso não era obra minha. Eu não trocava nada,
era uma mentira, se algo havia sido trocado, já chegava até mim dessa forma. Eu
não podia suportar ser acusada por algo que não fiz.
Mais tarde naquele dia, minha mãe conversou comigo
sobre toda a situação, falou o quanto era importante que eu me dedicasse em
aprender e não em ser como os outros, ela me disse que eu não precisava me
preocupar em ser boa em tudo, porque ninguém era, e isso era completamente
normal, e que se eu tivesse dificuldades em aprender algo, eu deveria lembrar
que não era a única. Eu deveria ter calma e seguir meu próprio tempo.
Nos últimos anos a coisa sobre a qual mais refleti foi
sobre esse tal de tempo de aprender, tempo de crescer, sempre foi confuso para
mim, essa calma também, calma para aprender e respeitar meu ritmo, é um
trabalho constante. Nos projetamos demais nos outros e projetamos muito os outros
em nós mesmes, forçando padrões não só no nosso aprendizado, mas no aprendizado
desse outro, seja esse outro colega
de classe na universidade, as crianças com as quais temos contato, membros de
nossa família, nossos alunos, alunas, alunes. Aprisionamos quem quer que seja
em um padrão, fazendo com que essas pessoas pensem ´´os números não gostam de
mim`` ou ´´as letras não gostam de mim`` e gerando sobre tudo o que não aprendemos
com enorme facilidade o sentimento de; ´´Eu odeio os números``, ´´Odeio redação``,
´´Odeio ciências exatas.``, ´´Odeio ciências humanas``.
Enquanto estudante de licenciatura, enquanto professora,
penso cada vez mais em como geramos raiva e angustia ao apressar os processos
de aprendizado, o quão insano pode ser uma criança pular etapas para alcançar
os demais? Pedimos que essas crianças pulem etapas quando padronizamos os
sistemas de avaliações, a dinâmica de sala de aula, o processo de construção
dos saberes, quando padronizamos os saberes, e tentamos encaixar todes na mesma
forma, quebramos todes que fogem do padrão e depois os deixamos de fora. E
mesmo que eu queira terminar o dia de hoje com uma mensagem feliz, preciso
confessar que tenho que me esforçar muito para não continuar a achar que as
letras não gostam de mim.
texto: Thavilla Oliveira Lopes
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